No final de julho, o Conselho Universitário aprovou o ensino remoto na UFSC em um modelo que é especialmente excludente. Estimulados pela impunidade do voto, que foi secreto no primeiro dia, a maioria dos docentes atropelou as principais medidas propostas para tentar minimizar os efeitos negativos do ensino remoto para estudantes. Maioria de homens brancos que pouco sentirá o efeito de suas decisões.
Ao longo da pandemia, formulamos nossas críticas ao EAD e ao Ensino Remoto em um texto próprio, além da realização de uma live e uma cartilha, construídas junto com agrupações da Resistência Popular Estudantil de outras partes do país.
Também somamos nossos esforços nos debates e ações que buscavam combater as medidas pró-ensino remoto, denunciando o discurso elitista, privatista e sucateador daqueles que defenderam seu avanço sobre as instituições públicas, parte de um verdadeiro projeto para a educação e não apenas um uso emergencial. Assim, compartilhamos responsabilidade tanto pelas pequenas vitórias localizadas quanto pelo cenário geral de derrota frente à entrada do ensino remoto. Muito segue em andamento e em disputa dentro dos cursos, programas ou em cada sala de aula virtual, na busca por acumular críticas, objeções e alternativas para que o ensino remoto não se expanda nem permaneça. Ainda assim, cabe desde já discutir os meios pelos quais nos organizamos e lutamos nessa batalha.
Uma frente de indivíduos?
Para além de algumas entidades estudantis que já estavam resistindo às medidas, assim como esboços de campanhas estudantis puxadas por forças políticas mas que não tiveram grande impacto, a Frente pela Educação de Qualidade (FEQ) foi a iniciativa que se apresentou mais visivelmente como alternativa de luta. O espaço teve o mérito de acolher muita gente imediatamente após a sessão lamentável do CUn, dando vazão à vontade de lutar que ganhou força naquele momento, além de oferecer uma posição de recusa real ao ensino remoto, ao contrário da posição adotada na graduação pelo Conselho de Entidades de Base (CEB) e pelo DCE.
Não é segredo que o espaço é herdeiro do movimento UFSC Contra o Future-se (UCF), importante para a construção da greve estudantil do ano passado. Por isso, consideramos necessário debater publicamente algumas características que nos preocuparam naquela ocasião e que podem novamente trazer consequências negativas pro movimento estudantil.
A FEQ se constrói em reuniões onde a participação se dá como indivíduo. O que isso significa? Que, em uma reunião, cada pessoa representa a si mesma; que caso ocorra uma votação, cada indivíduo vale um voto; que as propostas e argumentos de um indivíduo possuem peso igual a de uma representação ou delegação. Assim, mesmo que alguém esteja na reunião representando todo o debate de um Centro Acadêmico ou de uma frente de base, na hora de discutir e deliberar as ações, esse acúmulo coletivo é considerado da mesma forma que a opinião individual de alguém que, sem a garantia de uma discussão prévia junto com suas colegas ou pares, apresenta o que acha que pra si é o melhor caminho. Essa é a estrutura do que chamamos aqui de uma “frente de indivíduos”, onde o coletivo é eclipsado pelas epifanias individuais.
O modelo de uma “frente de indivíduos”, como foi o UCF, desfavorece o acúmulo de forças no médio-longo prazo, dificulta o enraizamento da luta nas bases e nos deixa desarmados contra o aparelhamento. Se endossamos a participação e os votos na Frente enquanto indivíduos, retiramos os espaços de base – a comunidade estudantil de nossos cursos e programas – como local prioritário de construção e esvaziamos os espaços das entidades estudantis, nossos CAs, Diretórios e Associações, que deveriam ser disputados internamente e pressionados a vir para a luta. São as entidades que possuem a maior legitimidade para impulsionar as lutas, congregar nossos esforços e encaminhar nossas reivindicações frente aos órgãos universitários e frente a nossos adversários. Mesmo quando há a participação de estruturas de base, como alega a FEQ, a representação gira em torno da participação enraizada no individual com repasses feitos ao Centro Acadêmico, por exemplo, tornando o espaço de base dependente das decisões da frente. Não o contrário, como deveria ser, em que a base estrutura toda a decisão, apropria-se dela, e acumula a força social mesmo nos momentos de derrota.
Mais do que isso, é preocupante que o modelo individual seja incapaz de promover organização estudantil. Assim que acabou a greve de 2019, que espaço manteve viva nossa articulação, o aprendizado teórico, político e prático gerado na luta? Infelizmente, campanhas e frentes de indivíduos tendem a ter vida curta e nos levar de volta à desorganização enquanto categoria. Além do crescimento das organizações políticas, que também é importante, precisamos cultivar estruturas coletivas que resistam não só à conjuntura imediata, mas que nos deixem mais preparadas para lutas futuras, algumas das quais não chamarão tanta atenção como o Future-se ou o ensino remoto, mas que podem se provar mais tarde estruturantes para o cotidiano da categoria estudantil. As frentes de indivíduos impossibilitam que tenhamos um coletivo estudantil permanentemente articulado, atento e forte.
Contudo, mesmo a curto prazo, sem priorizar a construção nas bases dos cursos e programas, vimos que na maioria dos casos não houve capacidade de organizar greves ou boicotes contra o ensino remoto. Inclusive, sem a construção nas bases, não se conseguiu nem mesmo correlação de forças para pautar em Conselhos e Colegiados garantias mínimas para um ensino remoto menos traumático.
Por fim, o modelo das frentes de indivíduos ainda permite que um conjunto bem articulado de pessoas – como uma organização política ou um grupo de amigos – faça valer suas propostas em cima de uma maioria que esteja desorganizada ou que esteja organizada atuando nos espaços de base. Tal minoria pode dedicar todos os esforços para participar de uma mesma reunião e passar suas propostas. Em outras palavras, essa metodologia privilegia setores que não possuem referência nas bases e em suas entidades ou que apresentem disponibilidade para acompanhar múltiplas reuniões virtuais por semana durante a pandemia, outro recorte que remete às exclusões do ensino remoto. É essa falsa impressão de uma reunião mais aberta que permitia que, durante a greve de 2019, o movimento UCF tivesse um “núcleo duro” que fazia reuniões fechadas e, na prática, acordava de antemão o que seria decidido nas reuniões amplas do movimento.
Alternativas organizativas
Sabemos que nem sempre as entidades estudantis são um caminho para a mobilização. Na verdade, o mais comum é que elas estejam burocratizadas e distantes das bases; que sejam espaços onde a maioria das estudantes não se reconhece. Essa impressão costuma ser fortalecida pelo frequente aparelhamento realizado por organizações políticas que usam o espaço coletivo para ganhar legitimidade, falar em nome do conjunto das estudantes, ou apenas para sua autoconstrução.
Além disso, mesmo acreditando na organização de base e na disputa para colocar as entidades a serviço da luta coletiva, sabemos que essa alternativa nem sempre é viável imediatamente, e as lutas não podem ficar esperando essa mudança acontecer. No caso do ensino remoto, há ainda a situação das entidades que já tiraram posição favorável a ele, opinião que é inclusive majoritária em determinados cursos.
Nesses casos, a luta pode e deve envolver a criação de outros espaços de mobilização coletiva, seja um grupo de extensão, um coletivo de oposição ao CA, um comitê local contra o ensino remoto, entre outras alternativas possíveis. Diferentes nomes para uma mesma ideia: estruturas de base que aumentem o nível de organização estudantil. Não podemos abrir mão de nos organizar localmente, nos cursos ou centros, de forma aberta à participação, para levar posições coletivas nos espaços mais amplos de articulação, seja a FEQ, uma campanha contra o ensino remoto, um comitê de entidades ou qualquer outro espaço que for criado.
Defendemos a construção de movimentos democráticos de baixo para cima, isto é, com medidas que conciliem ações de maior escala com a autonomia de cada espaço. Isso exige que esses espaços mais amplos de articulação potencializem as lutas na base, ao invés de serem espaços decisórios primários.
Além de possibilitar o enraizamento da luta em cada local, são essas estruturas de base que aumentam o nível da organização estudantil e nos deixam mais fortes para todas as batalhas que virão pela frente. São sementes de organização popular que dão bons frutos.
A luta do âmbito geral para o local
Nos órgãos deliberativos centrais, Conselho Universitário, Câmara de Graduação e Câmara de Pós-Graduação, não foi possível barrar os ataques. Não conseguimos, neste momento virtual, fazer um batucaço na porta do Conselho ou mesmo ocupar seus corredores. A falsa democracia nos órgãos é uma piada de mau gosto, seja pela enorme concentração de votos nos docentes ou pela condução da Reitoria, de forma que é muito difícil arrancar vitórias aí.
Enquanto buscava um pedido de reconsideração, que acabaria sofrendo o golpe de uma votação apressada e ilegítima conduzida pelo reitor Ubaldo, o DCE defendeu a preparação para as lutas locais em cada colegiado, mas posicionando-se a favor de disciplinas curriculares remotas, desde que com garantias para reduzir a exclusão. Por outro lado, a FEQ apontou para uma recusa genérica ao ensino remoto, organizada na UFSC, no estado ou mesmo em plenárias nacionais, mas foi incapaz de incidir nos espaços onde efetivamente está sendo decidida a adesão ao ensino remoto em cada um de nossos cursos e programas.
É importante entender o cenário muito diverso em que cada Curso, Centro ou Programa de Pós-Graduação se encontra. Os dois programas de pós-graduação strictu sensu de educação da universidade (PPGE e PPGECT), por exemplo, conseguiram barrar o ensino remoto regular em colegiado ou por maioria de votos em assembleia geral de estudantes, TAEs e docentes. Vitórias que representam o histórico de organização estudantil nos programas, mas também o acúmulo de debate crítico sobre o significado do ensino remoto – e que deveriam ser divulgadas pelo movimento estudantil como exemplo, especialmente pelo recado que enviam às redes de educação básica, onde o ensino remoto foi implementado à força e está gerando situações de grave exclusão ou precarização do trabalho. Na graduação, também há cursos desenvolvendo mobilizações expressivas pelo caminho do boicote a parte das disciplinas, como ocorre nas Ciências Biológicas.
No entanto, na maior parte dos cursos e programas, a categoria estudantil está mal organizada ou a posição favorável ao ensino remoto é muito grande. Entre determinados Centros, em especial onde há maior relação com os setores do capital interessados na EaD, a mera discussão sobre o tema é vetada e atropelada pela maioria dos docentes.
Mas, se é verdade que não conseguimos mobilizar ainda um amplo movimento contrário ao ensino remoto, cabe desde já analisar os rumos que estamos tomando, os riscos que corremos em cada tática, pensando estrategicamente no futuro: que formas de organização permitem mais aprofundamento do debate e, principalmente, acúmulo de forças?
O ensino remoto não é um efeito colateral da pandemia do vírus, mas sim uma característica fundamental da pandemia capitalista e neoliberal na educação. Não há vacina contra ela. O tratamento contra a precarização, exclusão e descaracterização da educação pelos meios remotos será uma terapia de longo prazo. A mensuração da sua temperatura será a correlação de forças. Como sempre, é hora de organizar a luta estudantil pela base!