EaD não é a solução durante a pandemia

Publicamos a série abaixo em três textos no site Repórter Popular. Aqui, incluímos os três textos na mesma postagem, pois fazem parte de uma mesma análise crítica do uso da EaD, em especial no momento da pandemia.


EaD não é a solução durante a pandemia: o determinismo da tecnologia e o uso de nossos dados

Na medida em que a pandemia avançou, e com vistas a fortalecer o distanciamento social, instituições de ensino de todo o país suspenderam suas atividades presenciais. No entanto, muitas delas vêm buscando ou implementando alternativas para o funcionamento a distância.

Muitas pessoas presumem que as tecnologias digitais e o ambiente virtual permitem realizar atividades da mesma forma que presencialmente. Nas últimas décadas, afinal, tantas coisas que fazíamos em papel ou pessoalmente passamos a fazer digitando em computadores ou celulares no sofá de casa. Por que seria diferente com a educação? Ela já não vem funcionando dessa forma em muitos lugares?

São várias as razões pelas quais educação e distância não combinam. Com esta série de textos, nos propomos a discutir criticamente a Educação a Distância (EaD), pois não podemos deixar que, neste momento, em que estamos todas fora dos eixos de algum modo, nos vendam como um futuro inevitável o que é na verdade uma péssima solução para os problemas da educação e, no fim das contas, das nossas vidas.

No primeiro texto, discutimos a origem e a história da EaD, o tecnicismo e a crença no progresso tecnológico por trás do otimismo atual, além dos impactos e implicações de migrar nossas salas de aula para a infraestrutura da Google, uma mega-empresa que vive de coletar e vender nossos dados. No segundo texto, discutimos consequências da adesão à EaD em nossas instituições de ensino, como a precarização do trabalho, redução da qualidade do ensino e aprofundamento do abismo de desigualdade entre as escolas privadas e a juventude pobre. No terceiro texto, discutimos a concepção de educação por trás da EaD e o que acreditamos ser o papel das escolas e universidades em meio à pandemia, na defesa de uma vida digna para todas. Os textos serão publicados, um por dia, aqui no Repórter Popular.

De onde vem a EaD?

Algumas pesquisadoras da área dizem que a origem histórica da educação a distância se deu com as cartas de Paulo a comunidades da Ásia menor, na tentativa de cristianizá-las em meados do século I. Outras enxergam a origem na invenção da imprensa de Gutemberg, no século XV, sendo a possibilidade de produção de livros em maior escala como um marco para a EaD. É seguro dizer que estas perspectivas sofrem do que chamamos de anacronismo: atribuir (erroneamente) ao passado conceitos modernos. Nesse caso, o anacronismo acaba sendo uma forma de naturalização – fazer crer que a EaD é algo que sempre “esteve aí”, em vez de ser algo construído pelas pessoas em um contexto específico.

A despeito da controvérsia, o início de cursos de línguas via correspondência na Europa do Século XIX é um marco mais comumente aceito para o início da educação a distância. Desta forma, o histórico da EaD se relaciona aos avanços nas tecnologias de informação e comunicação, passando pelos serviços postais nacionais, o rádio e posteriormente a televisão, chegando às novas tecnologias de informação e comunicação que temos hoje, estas últimas permitindo a massificação da EaD.

Quando pensamos no caso brasileiro, a EaD surge primeiramente em 1904 por iniciativa estadunidense através de cursos por correspondência. É só a partir dos anos 30, no entanto, que ela cresce com mais força, com foco no ensino profissionalizante. Um grande estusiasta dessa modalidade foi Edgard Roquette-Pinto, considerado pai da rádio-difusão no país e também ligado a pautas eugenistas na época. A EaD então funcionava como alternativa especialmente na âmbito da educação não formal. Ela passou a ser utilizada sob a justificativa de tornar o conhecimento acessível às pessoas que residiam em áreas isoladas ou sem condições de cursar o ensino regular no período normal, como pretendeu Darcy Ribeiro, outro grande entusiasta da modalidade e que contribuiu na sua consolidação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96).

A EaD é inevitável?

Não é por acaso que a EaD pareça para tantas pessoas, em especial fora do campo da Educação, uma solução milagrosa. Um entre tantos exemplos foi dado pelo divulgador científico Átila Iamarino, que apontou o crescimento da EaD na educação como uma provável mudança positiva da sociedade pós-pandemia. Isso é resultado de uma concepção equivocada do que é a tecnologia, como se seu avanço fosse linear, inescapável; como se só pudesse caminhar nessa exata direção que vem tomando, e como se toda tecnologia viesse para o progresso e a melhoria da vida. É justo esse otimismo tecnológico? 

Enriquecimento de urânio, escavação do pré-sal, plantas transgênicas cujas sementes não podem ser replantadas, celulares com geolocalização por GPS, vacinas e medicamentos contra doenças tropicais… quais recebem prioridade e investimento? Quem se beneficia de umas e de outras? Quem decide sobre seu uso?

A tecnologia que chega a ser produzida é o resultado da correlação de forças e interesses por trás da produção científica, industrial, das políticas públicas e das previsões do mercado. Se o capitalismo é o modelo de sociedade em que o capital fala mais alto, as tecnologias produzidas nele servirão acima de tudo ao capital, ao aumento das taxas de lucro e redução de custos. Isso não significa dizer que a tecnologia vá sempre ser negativa e que devemos abandoná-la, pelo contrário. Significa entender como ela tem grande potencial de impactar a sociedade e mudar seus rumos. Precisamos criticar as tecnologias existentes como passo para disputar a produção de tecnologias que sirvam às classes oprimidas!

Afirmar isso em um contexto de avanço da EaD significa questionar a quem as tecnologias digitais no meio educacional estão servindo e com que propósitos. Temos hoje a empresa brasileira Cogna (antiga Kroton) como a maior do ramo educacional no mundo e a realidade de mais vagas em instituições de ensino superior para a modalidade EaD do que a presencial no país. O que está em jogo, afinal?

É importante lembrar que muitas daquelas que agora defendem que a educação não pode parar e que as aulas online são fundamentais não disseram nada quando o Governo Federal acabou com a TV Escola, uma importante iniciativa pública que produzia bons materiais e conteúdos auxiliares, atuando como um complemento à distância para a formação. Qual é a verdadeira preocupação então?

A Google vê na pandemia uma oportunidade

Quem aparece neste momento como alternativa para efetivar a educação a distância não são as estruturas públicas, mas iniciativas como o Google for Education. A rede estadual de Santa Catarina é um grande exemplo: após um acordo experimental em 2016, aplicado em poucas escolas, agora todas as escolas do estado estão sendo forçadas a realizar educação online através das ferramentas da empresa. Sem oferecer formação prévia, sem disponibilizar equipamentos adequados às professoras, muito menos às estudantes e suas famílias.

Há, no entanto, outro problema igualmente sério, mas pouco discutido, que é a quantidade massiva de dados pessoais que serão entregues à empresa mais valiosa do mundo – cujo lucro vem, exatamente, de explorar nossos dados e vendê-los para quem pagar melhor. Quais as possíveis consequências de oferecer à Google todos esses dados de milhões de estudantes?

Estes dados incluem nome, idade, endereço, equipamentos digitais de acesso (computadores e celulares), mas também seus saberes, dúvidas, ritmos de aprendizado, interesses, e interações sociais. Tudo que é feito nas plataformas da Google é monitorado e salvo para montar perfis pessoais aprofundados, que servirão para fazer marketing personalizado, políticas públicas de comportamento de massas, campanhas eleitorais, entre outras possibilidades que ainda não entendemos plenamente. Estamos colocando um conjunto de bilionários bisbilhotando cada passo da educação de cada um de nossos jovens!

A EaD é uma tecnologia que deve ser pensada criticamente, e se a forma técnica de sua implementação atual está sendo problemática, esta é apenas a ponta da geleira. Nos próximos textos, discutiremos outros efeitos da expansão da EaD na última década e como ela acaba se distanciando de uma ideia de educação aliada a uma vida digna.


EaD não é a solução durante a pandemia: precarização do ensino e o abismo da desigualdade

Por Resistência Popular Estudantil – Floripa

Este é o segundo texto de uma série sobre a Educação a Distância (EaD). No primeiro, relatamos a origem e a história da EaD, analisando o tecnicismo e a crença no progresso tecnológico por trás do otimismo atual, além dos impactos e implicações de migrar nossas salas de aula para infraestruturas privadas (como a da Google, uma mega-empresa que vive de coletar e vender nossos dados). Hoje, falaremos sobre os resultados de aderir à EaD em nossas instituições de ensino, como a precarização do trabalho, redução da qualidade do ensino e aprofundamento do abismo de desigualdade entre as escolas privadas e a juventude pobre.

Para onde a EaD tem levado

O avanço da EaD no ensino superior mostra-se mais acentuado quando o assunto é formação docente. Cursos de Pedagogia e Licenciaturas recebem o dobro de matrículas em comparação a demais áreas do ensino superior, e a rede privada é a que mais forma professoras hoje, mais da metade delas na modalidade a distância. Muitos desses cursos oferecem formação rápida para ingresso acelerado no mercado de trabalho, que para estas profissionais já se apresenta bastante precarizado, e vem consolidando uma indústria de cursos online para baratear os custos de formação.

O que se percebe é um sistema educacional que se torna cada dia mais perverso. O mercado forma professoras em EaD de modo apressado e pouco crítico, gestoras se aproveitam do mesmo discurso hegemônico de uso de tecnologias digitais como resposta para demandas atuais de ensino, e as trabalhadoras da educação acabam impedidas de realizar um processo educativo que considere cada contexto e realidade social, além de abordar outras dimensões para além da reprodução conteudista.

Trabalhando muito e ganhando pouco por isso, essas profissionais vêem seu trabalho se esvaziar de sentido, o que se reflete nas estudantes, que não vêem nos conhecimentos apresentados formas de lidar com situações de sofrimento e de transformar suas vidas. Isso também resulta em futuras profissionais reprodutoras de um sistema que as explora. A profissão passa a ser pouco desejada e buscada apenas pela facilidade de formação e ingresso no mercado de trabalho, mas a precarização do serviço e da formação faz com que sua ação pedagógica esteja cada vez mais afastada daquela que é realmente necessária.

Isso sem falar na realidade brasileira de desobrigação de formação pedagógica para atuação docente em instituições privadas, onde, para lecionar cursos EaD, são desejáveis apenas características como “inovação”, “adaptação”, “inteligência pessoal e emocional”, entre outras que fogem aos aspectos relacionais e de contexto, tão essenciais para a atuação profissional docente coerente e comprometida com os sujeitos da ação pedagógica. O cenário que se mostra é o de professoras com formação duvidosa trabalhando em condições precárias e (de)formando pessoas para o mercado de trabalho. Onde foi parar a democratização da educação?

A EaD como solução de emergência

Utilizada para tentar manter uma “normalidade” diante da pandemia, a EaD tem sido um desastre em vários níveis. Em vários casos, ela se resume a “atividades” sem contexto que estudantes deveriam desenvolver de forma “autônoma”. Em outros, ela se trata das mesmas aulas de sempre, só que transmitidas ao vivo. O problema é que estes últimos casos só costumam ocorrer onde há recursos, sejam eles financeiros, humanos e/ou tecnológicos. No caso do sistema público de educação, a falta de recursos não está só do lado da infrastrutura pública sucateada, mas também das próprias estudantes, que muitas vezes não têm acesso à internet ou, se têm, é precário ou exclusivamente através de celulares (que estão longe de serem dispositivos ideais para estudar). Muitas trabalhadoras da educação com frequência não têm treinamento adequado para o uso dessas ferramentas, e agora estão sendo cobradas para que as aprendam a toque de caixa.

Pode até parecer que com “recursos” a EaD poderia substituir a educação presencial. Mas este não é o caso. Muitas universidades citam aulas em laboratório como situações em que é impeditivo realizar educação a distância; na educação básica, o exemplo mais vívido talvez seja o da educação física. Não dá para abstrair os corpos dos sujeitos da educação como se fossem arquivos em uma “nuvem” digital, especialmente no contexto em que vivemos. Assim como Restaurantes Universitários fornecem alimentação adequada e acessível, imprescindível para a permanência de tantas estudantes, sabe-se o papel essencial das merendas escolares para muitas estudantes e suas famílias. Estudantes que, aliás, sentem o estresse de ver no domicílio uma prisão, a ansiedade de ouvir estatísticas obituárias cada vez maiores todos os dias, o peso de perder familiares, de lidar com o medo do endividamento, do despejo, da fome. Há ainda algumas cujas casas sequer são lares, mas ambientes de abuso e falta de perspectiva em vez de acolhimento.

Dessa forma, a manutenção das aulas online em uma falsa normalidade faz mais do que precarizar o ensino. Ela aprofunda o abismo da desigualdade existente por toda a falta de condições materiais na maioria dos lares do país. Mais do que os conteúdos, em si, é o convívio com a estrutura da escola e com as suas trabalhadoras que permite enfrentar muitas dessas ausências, conhecer as dificuldades de cada pessoa, pensar em acessibilidade, em oferecer vislumbres de um mundo mais amplo do que aquele visto dentro de casa. Ao contrário do empresariado da educação, que precisa manter as coisas em funcionamento porque só estão pensando na garantia de seus lucros, nós dizemos que não: nenhuma criança e jovem pode ser deixada para trás!

O que significa não deixá-las para trás? No próximo texto, discutiremos a concepção de educação por trás da EaD e o que acreditamos ser o papel das escolas e universidades em meio à pandemia, na defesa de uma vida digna para todas. Os textos da série serão publicados, um por dia, aqui no Repórter Popular.


EaD não é a solução durante a pandemia: o sentido da educação e a luta por uma vida digna

Este é o terceiro texto de uma série sobre a Educação a Distância (EaD). No primeiro, relatamos a origem e a história da EaD, analisando o tecnicismo e a crença no progresso tecnológico por trás do otimismo atual, além dos impactos e implicações de migrar nossas salas de aula para infraestruturas privadas (como a da Google, uma mega-empresa que vive de coletar e vender nossos dados). No segundo, discutimos consequências da adesão à EaD em nossas instituições de ensino, como a precarização do trabalho, redução da qualidade do ensino e aprofundamento do abismo de desigualdade entre as escolas privadas e a juventude pobre. Nesta parte final, discutimos a concepção de educação por trás da EaD e o que acreditamos ser o papel das escolas e universidades em meio à pandemia, na defesa de uma vida digna para todas.

“Educação” a distância?

A partir do que foi discutido em nosso primeiro texto, sobre a história da EaD, é possível entender por que ela já foi celebrada como “democratização”. O que ela faz ao levar conhecimento técnico onde este é de difícil acesso é certamente louvável. Ela ultrapassa não só barreiras geográficas como as de outros tipos, possibilitando que muitas trabalhadoras, mesmo em centros urbanos, consigam obter educação formal e melhorar suas vidas. Mas é realmente a “educação” que a EaD democratiza?

Comparar as cartas de Paulo do século I à EaD é mais que tentar naturalizar esta última: é dizer que evangelizar é o mesmo que educar. Mas educar é muito mais: é preparar para a vida, o que vale tanto para crianças quanto para a educação que buscam pessoas adultas. A vida não é só o que fazemos com corpos e objetos, mas também umas com as outras, enquanto sociedade. Toda educação ensina alguma coisa “técnica”, mas também socializa é um modelo prático de relações entre as pessoas.

Evangelizar é propagar uma ideia pronta, mas a sociedade que queremos é uma em que as pessoas convivam entre diferentes perspectivas. Para isso é preciso aprender a ouvir, analisar, dialogar, argumentar e chegar a acordos. Não estamos falando só de educação como fenômeno político – como algo que fomenta o convívio entre as pessoas, que embasa a democracia – mas da própria produção de conhecimento científico. Conhecimento de verdade é o que se põe à prova, que pode ser e é criticado. A educação exige debate, desafio; (con)vivências que nos causem estranhamento, seja na física ou no estudo de línguas, na biologia, na história. Na educação básica, trata-se de ampliar os horizontes de quem, de outro modo, poderia crescer confinada aos muros de uma tradição conformista; na superior, de produzir e transmitir não só as conclusões às quais outras pessoas já chegaram, mas o próprio raciocínio pra chegar a novas conclusões. Enfatizamos que o aspecto coletivo e social deste processo é uma de suas características mais essenciais. Não importa o quanto textos, vídeos e aparelhos estejam na mediação do processo de aprendizado, este se dá pela interação humana acima de tudo.

É isto que entende por educação quem defende a Educação a Distância e a “democratização” com ela promovida? Provavelmente não. A EaD pode ser fundamental para democratizar a “instrução”, tanto quanto o Youtube permite que pessoas possam aprender a consertar seus próprios computadores ou o SciHub leva artigos acadêmicos para pessoas que não poderiam pagar por eles talvez daí a tendência ao anacronismo que vimos no primeiro texto: qualquer transmissão de “dados” à distância pode ser reinterpretada como EaD! É obviamente benéfico que certos tipos de instrução cheguem onde faz falta, mas isso não substitui um espaço coletivo dedicado à aprendizagem. A EaD pode democratizar também as “credenciais”, isto é, diplomas e certificados que abrem portas num mercado de trabalho competitivo. Porém, esse “credencialismo” – em que remuneração tem mais a ver com diferenças socioculturais entre classess do que com a utilidade e a onerosidade do trabalho – também precisa ser criticado, especialmente porque afunda a classe trabalhadora em dívidas sem lhes oferecer a real experiência de uma educação superior como local de debate crítico, formação, de produção do conhecimento e de extensão a partir das demandas da sociedade, para além da formação que o mercado quer de nós. 

Sabemos que o modelo escolar predominante hoje tampouco conduz a essa definição de educação. Inúmeras escolas dizem “preparar para a vida”, mas isso frequentemente implica reproduzir a sociedade como ela é, com todas as suas mazelas. Mesmo quando o modelo de educação autoritário e industrial é subvertido, é para atender aos interesses de mercado: as elites querem que aprendamos todas a sermos “resilientes”, “flexíveis”, “empreendedoras” e “emocionalmente inteligentes”. Em outras palavras, que nos vejamos como agentes do mercado, nos adaptemos às decisões que as elites tomam, soframos os problemas sociais sem entender que são sociais. É a luta cotidiana das trabalhadoras nas escolas públicas – e também em algumas particulares – que torna a educação muito mais do que essa instrução técnica, uma educação que cria novas relações sociais e abre brechas para o conhecimento crítico que pode transformar a realidade. 

Quando o Fórum Econômico Mundial argumenta a favor da EaD, não apenas temporariamente mas como um “legado” da pandemia para a educação do futuro, sabemos que essa modalidade de educação promove valores que vão na contramão da sociedade que queremos construir. Através da naturalização da EaD e de nosso engajamento acrítico com ela, aprendemos que “educação” significa receber um depósito de conteúdo pronto isoladamente em nossas casas, gerenciando nossos próprios problemas de aprendizado usando ferramentas monopolizadas por empresas, sem buscar alternativas para a promoção de igualdade e solidariedade nesse processo. Isso não é educação a distância, mas tão somente distância: ficamos cada vez mais longes do mundo que deveríamos estar construindo no rastro de destruição que a pandemia deixa no tecido social.

Educação e vida digna

Durante a pandemia, a vida das pessoas, sobretudo da classe trabalhadora e dos outros setores oprimidos, está em risco. Não é só o vírus que enfrentamos, mas a diminuição da renda que afeta as condições materiais do povo. A pandemia só agravou uma crise anterior, de extrema precarização das nossas vidas aqui de baixo, com um aumento de custos das coisas mais básicas, como arroz, feijão, ônibus e aluguel, fora a política intensa de ataques aos direitos trabalhistas. Só cresce o número de trabalhadoras informais e o desemprego. Estamos sem um horizonte de vida digna, seja antes ou após a pandemia.

Nesse contexto, precisamos olhar para os currículos e entender que os conteúdos são apenas parte do que é função da escola ou da universidade. Sem comida no prato, fica difícil pensar no conteúdo perdido ou aquele que deve ser vencido online. As escolas e universidades públicas nesse momento podem ser espaços que atenuem os efeitos da pandemia e busquem garantir condições mais dignas para resistir a esse momento, através da distribuição de alimento e outros recursos, oferecendo seu espaço físico para uso dos órgãos de saúde e também permitindo que as professoras possam contribuir nesse momento em ações de apoio mútuo, não em planejamento de aulas. Sabemos que nossas escolas sempre foram porta de acesso para outros direitos sociais em nossas comunidades: local de informação e mobilização para vacinação, campanhas de saúde, políticas de assistência social, defesa dos direitos das crianças e das mulheres em casos de abuso, em muitos casos também um ponto de ajuda mútua onde as comunidades se organizam durante emergências e catástrofes. Nossas instituições de ensino devem pensar antes de tudo em nossas comunidades.

Além disso, pensar a EaD como nossa única chance de democratização de uma educação a algumas localidades e situações limita muito nossos sonhos sobre outro mundo. Temos que nos permitir sonhar por uma educação do tempo, em que todas aquelas com interesse e vontade de aprender possam ter a oportunidade para se demorar naquilo, sem ter a preocupação encaixotando sua vontade e seu direito a uma noite livre dentro da agenda cansativa da classe trabalhadora. Precisamos sonhar uma educação interiorizada, que chegue nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária, quilombos e aldeias, em cada comunidade com o interesse de ter em seu território uma instituição pública de ensino. Nesse modelo, não é a cidade que oferece o ensino de longe a partir de uma realidade outra, mas a educação se dá de forma territorializada, fincada no chão em que brota como troca e a escola como um espaço de socialização, não mera transmissão de dados. É preciso sonhar e é preciso lutar cotidianamente para construir o projeto de educação que queremos para os povos oprimidos, sem o qual não existe vida digna!